sábado, 28 de setembro de 2013

Quem Me Ensinou A Excelência

Geraldo Martins* 
Homenagem
A
 Quem Me Ensinou A Excelência

Pela quarta vez no jogo, lancei a bola para o cesto, fazendo três pontos. Ao salto certeiro, contrapôs-se uma queda brutal. Contorcendo-me de dores, levantei-me lentamente do chão,já físicamente diminuído.

Na manhã seguinte, sentei-me na aula, o braço direito imobilizado por uma camada espessa de sulfato de cálcio. O gesso na mão recusava-me a escrita (a mão esquerda é inválida para o ofício).

Como  escrever então os apontamentos que o professor ditava em voz alta?

Como uma bússola, a colega ao lado apontou a solução. Colocou o meu caderno ao lado do dela e, com uma rapidez impressionante, pôs-se a escrever alternadamente nos dois cadernos.

Escrita limpa,
Caligrafia, uma obra de arte,
Rima científica,
Ponto final.
E nenhuma palavra se perdeu pelo caminho!

Eu já admirava a sua enorme inteligência abstrata – aquela inteligência que transcende o mero domínio material do conhecimento. A partir daquele dia, ou mais precisamente daquele alucinante exercício de escrita, passei a admirar-lhe uma certa inteligência concreta –a capacidade de escrever duas vezes mais rápido do que todos os outros.

Na época, o Liceu Kwame Nkrumah era um campo de concentração de cérebros audaciosos que aspiravam elevar-se até ao céu.

Havia os “solucionadores de problemas”, cujos cérebros funcionavam como dínamos, que em vinte segundos banalizavam um complexo exercício de trigonometria.

Havia os “eruditos”, capazes de dissertar sobre qualquer assunto com uma fluidez espantosa.

Havia também os “quietos” que, sem pertencerem formalmente a nenhum dos dois grupos, surpreendiam a todos com as notas mais altas em qualquer prova.

Os primeiros, arrastavam um horda de seguidores fascinados pela magia do cálculo. Os segundos, atraíam admiradores confusos que perguntavam que livros tinham lido que eles não tinham lido. Os quietos, como era de esperar, conseguiam a extraordinária proeza de confundir os super-dotados dos dois grupos.

A que grupo pertencia a minha colega?

A nenhum. Ela era tudo isso mais alguma coisa; essa alguma coisa que ninguém consegue decifrar.

Foi com esta descoberta que comecei a entender a natureza da excelência. Uma pessoa brilhante não se explica. Ela é apenas brilhante. Brilha!

Mas qual é o conteúdo do brilho? Não sabemos muito. Mas consta que o brilho não está apenas nas notas persistentemente altas, desafiando o ciclo natural de vida (que tem altos e baixos), mas também no estilo profundamente sedutor, no carisma, na confiança, e ainda no mistério. Isto é, o brilho está, simultaneamente, na substância e na forma, as quais se articulam maravilhosamente, a substância moldando a forma,  e a forma, por sua vez, moldando a substância.

No mundo das pessoas brilhantes coexistem duas externalidades opostas – a dádiva e o mito. A dádiva é a externalidade positiva. Todos usufruem do brilho sem pagar nada. O mito é a externalidade negativa, a possibilidade da interpretação livre das razões do brilho, que, esta sim, pode trazer consequências imprevisíveis, como naquela tarde em que a minha colega, sentada na sala de aula no Ciclo do Bairro de Ajuda, lhe arrancaram o fio de ouro que trazia à volta do pescoço, os autores de tal ato acreditando que, naquele fio de ouro,estava o segredo do sucesso, numa desesperada e fútil associação entre brilhantismo e misticismo.

Para as pessoas brilhantes, o tempo é amigo, porque tudo dá certo, e cada vez mais certo à medida que o tempo passa.

Um dia, a minha colega supreendeu-nos com um anúncio:por razões familiares, iria viver em Portugal, imediatamente. Tínhamos acabado de concluir o sexto ano e começado o sétimo. Adaptar-se-ia à nova vida? Teria êxito lá onde nos parecia que estudar era coisa mais séria? Ninguém pareceu preocupar-se muito com o seu destino, o que, olhando as coisas em retrospetiva, não deixa de ser injusto. Mas quem perderia o seu tempo a preocupar-se com a possibilidade de uma pessoa brilhante deixar um dia de ser brilhante? O brilhantismo é uma constante, como C na fórmulamágica de Einstein.

Ela partiu então para a Cidade Invicta e, como na odisseia, chegou, viu e venceu.  Terminou o liceu. Seis anos depois, voltou a Bissau com um diploma de medicina no bolso. Quando nos encontrámos, enquanto falávamos, eu olhava para aqueles olhos perspicazes, e pensava:

Aqui está a excelência.

Pensei, com alguma ironia, que excelência é a palavra do dicionário mais mal utilizada.

Bom dia excelência, diz-se a um ministro que passou dez anos a fazer o seu curso, e que nada percebe do que anda a fazer.

Alguns anos antes – nos idos tempos do liceu –, naquele universo académico maluco onde cada um procurava superar-se a si próprio, ela se tornarao ponto de luz para onde se dirigia o meu olhar. Sem o saber, ela era a minha referência no exercício pessoal de auto-motivação.

A carreira profissional da minha colega foi meteórica. Ainda a vi a exercer medicina. Ela era boa médica? Como podia eu saber?Mas precisava mesmo? Sabia que era. 

Anos mais tarde, decidiu abraçar a saúde pública. Preparou-se para o efeito, entrou para uma organização internacional e, gradualmente, começou a subir a sua escadaria, até se sentar numa cadeira de honra.Num mundo onde a competição é cada vez mais global, aquela cadeira que ela ocupa está impedida a muitos talentos.

Apesar disso, como todos os grandes espíritos, ela continua a ser aquela mesma pessoa humilde e discreta que conheci nos primórdios da nossa saga liceal.  Às vezes chego a pensar que a sua humildade é inversamente proporcional à sua capacidade.

Em Windhoek, na cadeira mais importante da Organização Mundial da Saúde, está sentada a minha colega. Ela continua a oferecer a sua genialidade a uma África que ainda não despertou completamente do pranto.
Magda Robalo

Em Windohek, com a sua linda família, vive a Magda, a minha colega.

*Geraldo Martins - guineense, ex-ministro da Educação Nacional, Cultura e Desporto e especialista em Desenvolvimento Humano no Banco Mundial

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Apenas poesia...


                                A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
                                      Carlos Drummond de Andrade
Nascido em Itabira, Minas Gerais em 1902, Carlos Drummond de Andrade foi muitas vezes apontado como o maior poeta brasileiro do século XX. Com obras publicadas nos mais diferentes idiomas, se notabilizou pela construção de versos em um linguajar simples e extremamente belo. "Carlos Drummond de Andrade foi o mais completo poeta brasileiro moderno. Além de poesia, escreveu contos, crônicas e uma novela. Sua obra é uma força da natureza, muito importante para todos aqueles que desejam conhecer o Brasil." (Armando de Freitas Filho).

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Partecipe!!!

 
Ordidja-notando
 
Quando recebi este convite, e dei uma olhadela nos objetivos do evento, disse logo: Que ideia brilhante! Tive a oportunidade de felicitar(parabenizar) o irmão amigo e companheiro Eldmir Faria um dos dinamizadores e produtores do evento. Para além do vanguardismo, penso que as pessoas envoltas neste evento, ultrapassaram mais uma vez as querelas políticas que foram marcando as relações entre os dois povos. Os guineenses e cabo-verdianos estão ligados por laços muito mais profundos do que só a luta comum para a independência. Estamos ligados pela cultura, pela língua, pelo genes, pelo mar, pelo ser e pelo sangue. Temos uma origem comum, e a nossa identidade apresenta marcas imortais e indestrutíveis. Não há como separar os dois povos... O que se passa neste momento são politiquices, que se transformou em ameaças e de vida humana, desembocando numa troca de galhardetes politicas. Ao meu ver,  entre os irmãos existe uma crispação nas relações politicas, que transpassou gerações, tanto nos que gostam de brincar aos governos, como aqueles que gostam de brincar ao unicismo. Lembrei-me na hora do Nhu Puchin,  que previa nos futuros felizes dos povos Irmãos, encontro em finais de Copa de Mundo de futebol, em que na final jogavam os dois Estados, e claro num relato empolgante e extremamente cómico desse astro da rádio, contador de estória, impar, o jogo ou a partida de futebol terminava, com a vitória de Cabo-Verde, depois de um prolongamento, jamais visto na modalidade. Adorei ler que os Tubarões Azuis, são cabeça de serie, na disputa para a Copa do Brasil. E claro tenho  a esperança que Paulo Torres ajude a sério a seleção de futebol guineense, enquanto treinador. 
 
Bem Haja irmão Gu, e aceite os parabéns e muitos sucessos neste evento cultural de grande porte criativo.
 
Aquele abraço, leitor se estiver em Lisboa não perca este evento que celebra a nossa UNIÁO!!!        


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Em memória do Zé Manel e do Hélder

Dr. Augusto Paulo

É com grande pesar e tristeza que soube do desaparecimento físico do Zé Manel e do Hélder num espaço de tempo assim tão curto. O quanto tinham ainda para viver e dar a família e ao país o que de melhor sempre possuíram.

Neste momento de dor e da angústia que partilho convosco, estas duas figuras foram e continuarão na minha mente para sempre e não é para menos. Isso porque uma parte da minha infância-adolescência decorreu no mesmo bairro – o de Mindará onde eles cresciam e desenvolviam debaixo da tutela da mãe, a saudosa D. Dina, antes de mudarem, creio em 1966 ou 67, para o bairro de Varela-Chão-de-Papel.

Em Mindará recordo que, sobretudo eu e o Zé Manel, de um lado, éramos do Sporting, e do outro, o saudoso Zé António que era um ferrenho do Benfica. Aos domingos, íamos à missa na Sé Catedral de Bissau e à tarde ao cinema na UDIB. Também recordo o quanto apreciávamos os filhoses da D. Dina, mulher galinha que muito batalhou para “criar” os seus filhos. Que grande orgulho ela tinha por eles com aquela fala mansinha, mas carregada de determinação! Ainda sinto o toar muito parecido das suas vozes. Uma herança ímpar! Eu para eles era Marcos e não Augusto Paulo, um interposto do meu pai que na altura não conhecera. Também fui criado pela minha mãe.Como ela e a D. Dina trocavam visitas, atrevo-me a dizer que foram amigas e confidentes.

A última vez que estive com o Hélder, foi há uma coisa de 2 anos ou menos. Estava de viatura e parei para cumprimentá-lo numa rua, arredores de Meteorologia, daquela que é perpendicular a um dos portões do estádio de futebol Lino Correia, ex-Sarmento Rodrigues. Como aceitou a minha boleia, descemos a rua abaixo.

Lembro-me muito bem da nossa conversa.Não foi sobre nós e a família, nem sobre o país como é habitual, mas sobre a música: tocava no carro um CD com a música de Franco de OK Jazz e isso nos fez viajar atrás aos idos tempos em que víamos dançar, pendurados nas janelas, os nossos adultos.

Ainda prometi ao Hélder que lhe faria uma cópia da música, mas não passou dessa promessa. Como a viagem era tão curta, só nos permitiu debicar as nossas saudades daqueles tempos de Mindará antes do nascimento da nossa República da Guiné-Bissau. O Hélder desceu do carro. Despedimo-nos e ele entrou numa vivenda de centro de Bissau. Nunca mais o vi.

Ai que saudades:das nossas mães! Dos tempos de “cadjús e de mangus”! Da escola! De relatos de futebol no rádio! De claques do Benfica contra Sporting e vice-versa. Da espera das nossas mães que regressassem de “Fera diBandi” porque traziam sempre qualquer coisa de “pêga barriga” enquanto cozinhassem o saboroso almoço. Que amor e proteção nos davam! Mas que tamanha saudade!
José Manuel Saldanha e Hélder Saldanha

E eis que o Zé Manel e o Hélder me deixaram. Estou triste mesmo!
Para ambos, é muito pouco o que eu conseguiria verter. Mas guardo isto deles para sempre! Como é maravilhoso sentir tais saudades! Eu só queria desta forma, honrar a alma deles e partilhar esta memória com a família que também considero minha, sem ambiguidades.

Que as suas almas descansem em paz!

Marcos/Augusto Paulo.
Petrópolis. Rio de Janeiro. Agosto de 2013.