domingo, 24 de março de 2013

Leitura obrigatória...



Prezados colegas e amigos,

Depois de várias tentativas e injunções, finalmente publico, em solo, um caderno de poesias. Nesta compilação com o título de Tanamu Fenhi, o meu tema único é a Guiné-Bissau, o meu país, o país que me interpela com amor e alegria, com forontas e kasabis que povoam a minha parte na história milenar desta terra sofrida. Nesta colectânea conto duas Guinés numa só. 

Nela canto a Guiné da esperança consubstanciada na si po di kurpu, ancorada nas suas mulheres badjalankas, embandeirada na épica resistência à dominação estrangeira, nas suas bolanhas, nos seus mares, no sorriso da Sindatche e das crianças, e nas matas onde nos refugiamos e regeneramos incessantemente para os desafios de amanhã. Entretanto, em Tanamu Fenhi incrusta a República de Kafumban, que é um choro. Choro muito a minha Guiné, aquela que eu vejo como um menino de criação, uma mulher sofrida, um lantindan ki na koi-koi, vítima da própria história, configurada numa República de complicações, adiando a materialização dos sonhos da Independência.

O prefácio feito por Geraldo Martins empresta a este livro um valor incomensurável, pela sua beleza e pela amizade brindada e celebrada em cada paragrafo daquele introito. Confesso: o prefacio vale mais do que o próprio trabalho. 

A obra é dedicada à memória da minha mãe, Mamai Monteiro, que me ensinou as primeiras letras, da Nna Famata Camara que me aturou nos momentos mais turbulentos da minha juventude, da Nha Diminga, que se tornou minha mãe pelo casamento, do meu irmão Zike Saiegh que nunca me julgou e nunca me deixou cair, do Zé Carlos Schwarz e Armandinho Salvaterra cujas vida, obras, postura e trajetória serviram-me sempre de fonte de inspiração. À memória também, e sobretudo, do meu campeão, Hélder Proença, com quem ombreei-me para me tornar poeta e homem.
 Prezados colegas e amigos,

O objectivo da mensagem de hoje é de vos vender a obra antecipadamente, ao preço de 5000 XOF o exemplar, na Guiné, e 10 Euros, no estrangeiro. O objetivo da operação é de financiar o segundo livro - Kerença pertam pitu – que já se encontra também no Editor. O nome de todos aqueles que aderirem a esta operação de compra antecipada vai constar na segunda obra a aparecer em Junho ou Julho deste ano.

Tanamu Fenhi beneficiou do apoio financeiro do BAO, Ecobank, MaSa Segurança, Instituto Bentém, Tchitchi Nancassa, Geraldo Martins, Julio Baldé, Luís Cubre, Luís Cassati e Rui Pais.

Muito obrigado a todos

Huco

Ordidjanotando

“Huco Monteiro, ou simplesmente Huco, é nomi di kasa de João José Silva Monteiro, que participou dos conjuntos musicais Chave d’Ouro (Nkassa Kobra), Panteras Guinéus e Djorson, ao lado de Serifo Mané, Ernesto Dabó e Diana Handem. As músicas cantadas por Zê Manel têm diversas letras que foram escritas por ele. Em 2006 saiu seu longo poema “Sinais de paz” que, a despeito do título em português, está escrito em crioulo.
In: Hildo Honório do Couto, A poesia crioula bissau-guineense. Papia 18, 2008, pp. 83-100.”

Esta pequena apresentação do mais-velho Huco, que abre esta pequeníssima Nota, foi o que rapidamente encontrei na NET. Recebi a mensagem deste Post a cerca de 6 dias atrás. Não queria publica-la a seco, sem fazer rodapé, isto porque, de uns tempos para cá, o Huco tem estado a reescrever em crioulo, não só expressões populares, mas também sente-se através dos poemas dele uma certa angústia e magoa. Pelos vistos alguns desses escritos, está finalmente em livro.

O título  “Tanamu Fenhi” suscitou por estes dias um interessante debate no circulo de amigos que o autor enviou a mensagem que  publico. Vim à saber, afinal, que a expressão foi coptado pelo crioulo, da língua susso e que nessa língua não tem nada haver com o significado que o crioulo emprega. Tomo a liberdade de publicar a interpretação feita pelo próprio autor, respondendo questão levantada por um outro mais-velho Josué de Almeida, cujo o amigo e irmão trata por Djossé:

“Djossé,
Tanamu Fenhi é a forma como os "sussos" se cumprimentam: Ómama, Tanamu Fenhi. Todavia, no ciroulo da Guiné, esta expressão traduz a inferência subjetiva de uma potencial situação de briga, conflito, violência, descontrolo, etc. Este reinvestimento e troca de significados, tem certamente a ver com algum acontecimento do tipo barrafunda, ocorrido entre guineenses da nossa zona, nomeadamente os que falam crioulo e os guineenses do outro lado da fronteira (antes de 1886) ou na nossa fronteira Sul (Tombali), já depois de 1886). Quem sabe não será durante a preparação da guerra de libertação nacional, que deu origem a muitos malentendidos entre os oficiais da La Guinée e os nacionalistas guineenses, levando por vezes a prisões arbitrárias. Seja qual for o caso, os nossos passaram a associar (recordando/invocando o que se passou) os povos que utilizam essa expressão com a iminência de alguma conflitualidade descontrolada. A expressão foi assim naturalizada com o tempo, mas com um sentido diferente do inicial. Estas trocas de significados ocorrem frequentemente no relacionamento entre os povos. Os antropólogos falam de naturalização, empréstimos, mas também pode tomar a forma de indexação, recaindo sobre expressões (caso vertente), traços culturais  (o fanado), mas também o nome de um povo: pepel (designação portuguesa), balanta (designação mandinga), mandjaco (aqueles que dizem "mandjao").
Hoje na Guiné, Tanamu Fenhi é uma expressão muito vulgar e significa Lala quema kau sukundi ka tem; Barafunda na tem; Kampu Kinti, Padjigada
Este é o meu singelo entendimento, caro Djossé
Um abraço
Huco”

Resumindo, acabei aprendendo mais uma lição do crioulo, e estou ansioso por ter em mãos o livro e como comentei na mensagem que enviei ao Huco, “Cabeça na kosan, n'misti son pegal pa lei!!!”

Literatura africana de Luto!

Chinua Achebe 

"Nobody can teach me who I am. You can describe parts of me, but who I am - and what I need - is something I have to find out myself." Chinua Achebe


Morre Chinua Achebe, avô da literatura africana
Fonte: G1
Escritor de 82 anos é autor de "O Mundo se Despedaça", traduzido para 50 idiomas e com mais de 50 milhões de cópias vendidas. O romancista e poeta nigeriano Chinua Achebe, amplamente visto como um avô de literatura africana moderna, morreu aos 82 anos de idade.
Desde a publicação de seu primeiro romance "O Mundo se Despedaça", 50 anos atrás, Achebe formou um entendimento da África pela perspectiva africana muito mais do que qualquer outro autor.

Como romancista, poeta e locutor, Achebe foi um parâmetro contra o qual gerações de escritores africanos foram comparadas. Para as crianças de todo o continente, seus livros foram por décadas um abrir de olhos para o poder da literatura.

Descrevendo Achebe como "um colosso da literatura africana", o presidente da África do Sul, Jacob Zuma, lamentou sua morte. Nelson Mandela, que leu livros de Achebe enquanto estava preso durante o regime de segregação racial sul-africano, o classificou de um escritor "em cuja companhia os muros da prisão desmoronavam".

"O Mundo se Despedaça", publicado em 1958, fala do combate fatal entre sua etnia Igbo e colonizadores britânicos nos anos 1800. Foi a primeira vez que a história da colonização europeia no continente foi contada de um ponto de vista africano para uma audiência internacional. O livro foi traduzido para 50 idiomas e teve mais de 10 milhões de cópias vendidas em todo o mundo.

Mais tarde, Achebe voltou sua atenção para a devastação levada à Nigéria e à África por golpes militares e ditaduras. "Anthills of the Savannah" ("Formigueiros da Savana", em tradução livre), publicado em 1987, se passa após um golpe num país africano fictício, onde o poder foi corrompido e a brutalidade do Estado silencia a todos, exceto os mais corajosos.

A dor pela morte de Achebe foi sentida em toda a Nigéria, mas especialmente em sua terra natal, no sul do país, lar dos Igbos. "Toda nossa família está chorando de luto", disse o primo do escritor e um chefe tradicional da etnia, Uba Onubon, à Reuters no vilarejo de Ikenga.

Chinua Achebe 1930-2013: o escritor que tinha medo de ficar sem história
Fonte: Público

Um dos pais da literatura africana moderna e autor do romance Quando Tudo se Desmorona, morreu aos 82 anos. 

“Receio que esta triste notícia tenha sido confirmada”, declarou Mari Yamazaki, porta-voz das edições Penguin em Londres, num email enviado à France Presse, que não dá mais informações sobre o sucedido. Segundo os media nigerianos, o escritor morreu nos EUA, num hospital de Boston (Massachusetts).

Chinua Achebe levou para os seus livros as 500 falas do seu país e com elas contou o colonialismo europeu como nunca antes fora contado. Morreu aos 82 anos, sem Nobel, mas com seguidores que continua a pôr a Nigéria em destaque na geografia da literatura.

Escreveu em inglês, mas com uma babel na cabeça. A das palavras que se dizem na transmissão oral das coisas num país de 250 etnias e onde se falam 500 línguas. Ele era o sábio passador de experiências, o que dá nome às coisas e ao mesmo tempo é capaz de as traduzir para prosa, construindo narrativas sobre uma identidade em mudança e dando a cada leitor a ilusão de estar entre os que se sentam à volta da tal grande árvore a ouvir o sábio. A carreira literária e ficcional deste homem natural de Ojidi, sudeste da Nigéria, onde nasceu em 1930 tem como base um contágio civilizacional onde é difícil falar de inocentes – sempre foi um crítico de corruptos e de quem se deixava corromper – mas onde o Ocidente e a literatura que a Europa ia produzindo sobre África ao longo do século XX não saem bem na fotografia. 

Quando se fala de Chinua Achebe fala-se de um dos mais lúcidos narradores do colonialismo europeu em África e, depois da descolonização, um homem pouco desejado não apenas durante a Guerra Civil, como pelo regime ditatorial que se seguiu e que colou a Nigéria a uma das mais trágicas nações africanas da História recente.
Exilado, primeiro em Inglaterra e mais tarde nos EUA, continuou a escrever e a falar sobre a corrupção e a violência no continente africano. Chinua Achebe, o escritor que gostava de Yeats e de T. S. Eliot e que morreu em Boston, não se limitava a contemplar a paisagem à sobra da tal árvore. Foi o intermediário dessa paisagem em transformação, inaugurando um estilo que haveria de ser seguido por muitos autores africanos que, como ele, ou a partir dele, foram capazes de fazer a síntese entre um continente oral que tenta sobreviver com mais ou menos prejuízo da sua identidade, e um mundo comandado pela palavra escrita. Era assim em 1958, ano da sua estreia literária.  

Antes, desde o início, foram as histórias contadas em casa. Não lidas, mas ditadas pela memória. E quando pensava em histórias era assim que as via. Sons com um sentido quase mítico como nos livros que haveria de escrever mais tarde, depois do inglês se ter sobreposto na sua vida às falas do seu país. O pai, evangélico, era professor de religião, e a mãe corria a provincia de Igbo –  onde Chinua cresceu e que foi o centro da sua literatura - a passar o Evangelho. A conversão da família ao "Deus da Europa, uno" não foi suficiente para matar a oralidade dos muitos deuses, esse plural divino que marcou também a infância do escritor que, seduzido pelas histórias que ia ouvindo, quis encontrar as suas histórias. O medo, o perigo, como ele dizia em muitas entrevistas, era o de, no meio de tantas histórias, das histórias dos outros, não ter a sua propria história. Algo que dizia não apenas a pensar no indivíduo. 

Terá assim começado na escrita, a partir da necessidade de criar uma narrativa que, para ele, era uma forma de ganhar e preservar identidade. No caso de Chinua Achebe, fortemente marcada pelas origens. Por um continente e pela sua pluralidade de vozes, tragédias e sonhos. Essa tradição, hoje seguida por muitos nomes celebrados da literatura, foi iniciada com Things Fall Apart– editado em Portugal com o titulo Quando o Mundo se Desmorona (Mercado das Letras, 2008) – o primeiro dos cinco romances que escreveu e intercalou com mais de uma dezena de livros de ensaio ou poesia, e que continua a ser uma das mais vivas e inovadoras da actualidade, materializada em autores como Teju Cole (de que a Quetzal vai editar o romance Open City) ou Chimamanda Ngozi Adechie (autora de Meio Sol Amarelo e A Cor do Hibisco). Nesse ano – 1958 – com esse romance e essa capacidade invulgar de passar para a escrita a tradição da oralidade, pode dizer-se que se situa um dos embriões da literatura moderna africana. 

Pouco conhecido em Portugal, apesar de ter cá publicados três dos seus cinco romances – A Flecha e Deus, Edições 70, 1978 e Um Homem Popular, Caminho 1987, além do primeiro Quando Tudo se Desmorona – Achebe era considerado um dos mais influentes escritores de língua inglesa e os seus livros uma referência para quem queria perceber a cultura centro-africana. A tal ponto que o mundo literário não se espantaria se a Academia Sueca o tivesse premiado com um Nobel. Sobre ele, Nadine Gordimer, sul-africana e Nobel em 2001, destacou a capacidade invulgar de conjugar o riso e o horror. A observação vinha no longo artigo que a edição on-line do americano The New York Times dedicou à morte do escritor que dizia que a escrita se assemelhava a uma luta, mas que acreditava que o trabalho de quem escreve não se limita aos livros.

sábado, 9 de março de 2013

A DEPRECIAÇÃO DA MULHER AFRICANA PERANTE AS DEMANDAS DA ACTUALIDADE


Saliatu da Costa

Por: Saliatu da Costa*

Na sua essência e no mais curto espaço do tempo em que previsto, enumeram-se as vitórias da mulher com uma tremenda estupefacção, já que tem superado todas as espectativas e aos diferentes níveis!

As limitações que o passado nos impunha estão a ser ultrapassadas com uma revelação de qualidade que nem dava azo para algo diferente, senão a igualdade!
Foi preciso provar que se pode, podemos! Foi preciso conquistar espaço, conquistámos! Foi preciso lutar para uma equiparação de salário e ainda lutámos. Porém não haja dúvida, está para breve esse amanhecer! Tão breve, que na actualidade da família, o salário da mulher hoje é tão aguardado e valorizado como o do homem! Enfim, viva as nossas conquistas. Todavia, seria deselegante não parabenizarmos os homens, porque sim, eles entenderam o quão melhor é cooperar, respeitar e compartilhar.

Assim, cá vai o nosso sincero agradecimento ao homem actual! Dentre vitórias descritas, factos tristes como a violência contra a mulher e o silêncio que a maioria das mulheres continua a perpetrar, continuam a ser uma triste realidade. Outrossim, repleta de conquistas no recinto profissional e no seio da família, a mulher encontra uma oposição forte não no género oposto, porém na semelhança e não sabe lidar com isso! Engraçado! Como assim? 

Sem dúvida, almejamos e prezamos conquistas profissionais. Mas não é que o amor, a paixão, e o sexo, condimentam sempre mais? Mentira? Claro que não! Pois é exactamente aqui que nós tanto erguemos como caímos! No contexto africano, a mulher encontra uma insuportável rival no seu semelhante e lidar com os resultados da actualidade torna-se um quebra-cabeças!

Vejamos:

1  1.   Um homem maltrata e trai a mulher o tempo todo, a mulher se cansa e responde na mesma moeda. Nós, as mulheres, Julgamo-la leviana! Não seria melhor: carente e vulnerável?

2. Uma mulher que sofre a vida toda num casamento e deixa tudo passar, prezando a constituição da família que idealizou pelos filhos. Nós desprezamo-la! “ Esta também, o marido lhe faz cada uma e ela não reage”, murmuramos! 


3. Uma mulher de 50 namora um rapaz de 28. Dizemos: credo, está a desmamar o miúdo, mas que pouca vergonha! Porém no sentido inverso é possível!


4. O Marido arranja uma amante, a coitada nem queria, mas foi tanta a bajulação que acabou cedendo toda perdida, porque solitária e desiludida. Lá descobre a esposa e decidi dar um raspanete à rival. Mas porque não ao marido? Coisas nossas! 

5. Uma mulher opta por ser doméstica e tratar apenas da família e do lar, nós desprezamos! Mas é algum crime? São opções!

6. Uma mulher faz um aborto, nós crucificámo-la. “ Eu jamais faria”- dizemos!

7. Uma mulher torna-se amante e faz de tudo para sacrificar a esposa, que é tão mulher quanto ela. Decidida a acabar com o casamento da outra, não tem limites para a destruição! Em tempos de guerra vale tudo! Será?


Enfim, são tantas as situações em que a própria mulher enclausura àquela a quem devia entender ou pelo menos tentar!
A mulher africana tem -se revelado muito depreciativa e de má-língua, definhando a vida da outra, enquanto os homens se protegem até nas malandrices que nós conhecemos bem…



Mulher, todas somos e cada uma ao seu jeito ou ao que lhe calhou, mas para mim: a mulher ideal é aquela que luta honestamente pelas suas realizações. Aquela que olha para a sua rival e vê que os seus olhos também brotam lágrimas. Aquela que vê uma prostituta na rua e pergunta silenciosamente: porque será que essa mulher é prostituta! Aquela que ama e entende que o amor implica rir, chorar e gritar. Aquela que não tem complexos e preconceitos. Aquela que não luta para fazer sofrer a outra mulher! Aquela que entende que tudo tem limites e recomeça daí. Aquela que é mãe, mesmo sem parir, aquela que é amiga, aquela que se preocupa com o seu semelhante, aquela que luta pelo direito da Mulher. 



Este é o pensar dessa pobre Mulher, simplesmente mulher.



Bom dia de Mulher para todas as mulheres que se revêm na minha definição de Mulher.

Lisboa, 08/Março de 2013

*Escritora

Ordidjanotando

Embora a semana tenha sido marcada pela morte do Comandante Hugo Chávez, não podia deixar de publicar um post, sobre 8 de março, dia Internacional das Mulheres. Como ando numa onda de muita leitura e pouca opinião, fui vasculhando, lendo e apreciando vários artigos sobre esse memorável dia.
E foi embalado nessa aventura, que fui dar com a  página social do facebook, da Saliatu da Costa.

Quando acabei de ler este magistral texto fiquei estarrecido com cada frase/ideia que a Sali (nome partilhado com os conhecidos) levada pela candura que se lhe conhece, se refere ao papel da mulher. Com tato de uma escritora cada vez mais madura,  Saliatu da Costa, nos leva ao âmago das questões obrigatórias e atuais, que marcam os desafios da mulher africana e provavelmente guineense. Vale a pena ler e refletir sobre cada ideia partilhada no texto, e muito obrigado Sali pela clareza e objetividade.  

sexta-feira, 8 de março de 2013

A América do Sul após Hugo Chávez

Lula e Chávez 

Por Luiz Inácio Lula da Silva

O presidente Hugo Chávez foi muito importante para a América Latina e deixa um grande legado. A história registrará, com justiça, o papel que ele desempenhou na integração latino-americana e sul-americana, e a importância de seu governo  para o povo pobre de seu país. Mas, antes que a história se encarregue disso, é importante que tenhamos clareza da importância de Chávez no cenário político nacional e internacional. Somente assim poderemos definir as tarefas que se colocarão à nossa frente para que avancemos e consolidemos os avanços obtidos nesta última década, agora  sem a ajuda de sua energia inesgotável e de sua convicção profunda no potencial da integração dos países da América Latina e nas transformações sociais necessárias no seu país para debelar a miséria de seu povo. Suas “misiones” sociais, especialmente na área da saúde e da habitação popular, foram bem sucedidas em melhorar as condições de vida de milhões de venezuelanos.

As pessoas não precisam concordar com tudo que Chávez falava. Tenho que admitir que o presidente venezuelano era uma figura polêmica, que não fugia ao debate e para o qual não existiam temas tabus. E preciso admitir que, muitas vezes, eu achava que seria mais prudente que ele não tentasse falar sobre tudo. Mas essa era uma característica pessoal de Chávez que não deve, nem de longe, ofuscar as suas qualidades. 

Pode-se também discordar ideologicamente de Chávez: ele não fez opções políticas fáceis e tinha enorme convicção de suas decisões. 
Mas ninguém minimamente honesto pode desconhecer o grau de companheirismo, de confiança e mesmo de amor que ele sentia pela causa da integração da América Latina, pela integração da América do Sul e pelos pobres da Venezuela. Poucos dirigentes e líderes políticos, dos muitos que conheci em minha vida, acreditavam tanto na construção da unidade sul-americana e latino-americana como ele.

Junto com Chávez criamos a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), que integra 12 países do continente. Em 2010, a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) saiu do papel e ganhou forma jurídica – e isso não teria sido possível sem o empenho de Chávez. O Banco do Sul, um banco de desenvolvimento da Unasul, não seria possível sem a participação do líder venezuelano. Foi junto com ele também que conseguimos formar a Cúpula América do Sul-África (ASA) e a Cúpula América do Sul-Oriente Médio.

Por isso mesmo que a contribuição de Chávez ao seu país e ao projeto de integração da América do Sul e da América Latina não se extinguirá com sua morte. Se um homem público morre sem deixar ideias, quando o seu corpo físico acaba, acaba o homem. Não é o caso de Chávez, que foi uma figura tão forte que suas ideias permanecerão discutidas nas academias, nos sindicatos, nos partidos políticos e em qualquer lugar que exista uma pessoa preocupada com a justiça social e com a igualdade de poder entre os povos no cenário internacional. E talvez venham a inspirar outros jovens no futuro, como a vida do herói da independência Simon Bolívar inspirou o próprio Chávez.  Isso no campo das ideias. 

No cenário político onde essas ideias são debatidas, disputadas e podem virar realidade, todavia, ficar sem Chávez exigirá empenho e vontade para que os ideais do líder venezuelano não sejam lembrados, no futuro, apenas no papel.

Na Venezuela, os simpatizantes de Chávez, para manter o seu legado, vão ter pela frente um trabalho de construção de institucionalidades. Terão que trabalhar para dar mais organicidade ao sistema político, tornar o poder mais plural, conversar com outras forças e fortalecer sindicatos e partidos. A unidade do país dependerá desse esforço. 

É preciso garantir as conquistas obtidas até agora. Essa é, sem dúvida, a aspiração de todos os venezuelanos, sejam eles de oposição ou de situação, militares ou civis, católicos ou evangélicos, ricos ou pobres… Todos precisam compreender que somente a paz e a democracia vão permitir que se realize o potencial de um país tão promissor quanto a Venezuela. 

É preciso garantir instituições multilaterais fortes para garantir definitivamente a consagração da unidade da América do Sul. Chávez não estará nas reuniões de cúpula sul-americanas, mas seus ideais e o governo venezuelano lá estarão. A convivência democrática na diversidade dos líderes dos governos da América do Sul e Latina,  é a certeza da construção da unidade política, econômica, social e cultural da América do Sul e da América Latina, que tanto precisamos. Um caminho sem retorno. E, quanto mais fortes formos, mais teremos força para negociar a nossa participação da América do Sul nos fóruns internacionais, e sobretudo, para democratizar os órgãos multilaterais, como a ONU, o Banco Mundial e o FMI, que ainda respondem à realidade internacional do fim da Segunda Guerra Mundial e não ao mundo de hoje.

Certamente Chávez fará falta. Ele era uma figura muito forte e ímpar, capaz de fazer amizades e se comunicar como poucos líderes. Precisamos ter a sabedoria de tirar da passagem dele pela Terra e pelo governo da Venezuela as contribuições que podem resultar na consagração da unidade latino-americana. E tenho a certeza de que todos os governantes da região farão um grande esforço para que isso aconteça.  

Carismático e idiossincrático, capaz de fazer amigos com facilidade e de se comunicar com as massas como poucos outros líderes, Chávez vai fazer falta. Eu, pessoalmente, guardarei para sempre a relação de amizade e parceria que durante os oito anos em que trabalhamos juntos como presidentes, produziu tantos benefícios para o Brasil e para a Venezuela e para os povos de nossos países.