quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Li e gostei!


Um líder no começo
Por: Mino Carta*

E vem à tona, de súbito, um fato de 35 anos atrás. Uma entrevista de Luiz Inácio da Silva, mais popular como Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, então com 32 anos. Ali está a essência do pensamento de um operário que se tornaria presidente da República. A lucidez, a clareza, a coerência, a energia.

Lucidez. “Sou dedo-duro para a oposição, comunista para o governo, subversivo para os patrões”

Volto ao presente. Telefona Cynara Menezes, valente jornalista da sucursal de Brasília. Acaba de inaugurar uma nova seção no seu blog, destinada a divulgar antigas entrevistas. Pergunta se conservo uma de minha autoria, aquela de Lula publicada pela IstoÉ de 1º de fevereiro de 1978. Não, não conservo. Diga-se que nada guardo da minha vida profissional, artigos, colunas, coleções de revistas e jornais que dirigi. Nem sei se tenho em casa algum exemplar dos meus livros.

Entra em cena outro valente, Dilico Covizzi, foi meu companheiro de trabalho em diversas ocasiões, a começar por Veja, na qualidade de peça fundamental do Departamento de Documentação da Editora Abril. Seguiu-me noJornal da República e na IstoÉ. Pesquisador emérito, sabe à perfeição como e por que um arquivo não há de ser necrotério de documentos e informações. Hoje a exercer a profissão na qual se formou, Direito, ainda me atende quando preciso, e cabe a ele a tarefa de capturar aquela entrevista, capaz de levar um presidente da Fiesp, Mario Amato, a dizer: “Só falta agora o Mino namorar Lula”.

A  bem da precisão, contei naquele dia em São Bernardo com a preciosa escolta de Bernardo Lerer, enésimo valente, e desta surtida falo no meu livro de iminente publicação pela Editora Record, O Brasil, desabusado na mistura de memória com ficção. Por isso, a entrevista tem dupla autoria, restou-me escrever a reportagem que a precede, um perfil da personagem, estampada na capa de IstoÉ. Dizia a chamada: “Lula e os Trabalhadores do Brasil”. Foi a primeira capa dedicada a quem, 24 anos depois, alcançaria a Presidência de todos os brasileiros, sem exclusão dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.

O mergulho nas páginas de 35 anos atrás me fez bem, tenho todas as razões para me orgulhar daquela edição, daquela reportagem e daquela entrevista. Limito-me a reproduzir trechos desta. Bernardo e eu perguntamos: “Mas onde você está ideologicamente?” O entrevistado responde: “Digo de peito aberto que não tenho compromisso com ninguém e que o Sindicato de São Bernardo e Diadema é uma da poucas coisas independentes que existem nesta terra. Só tenho compromisso com os trabalhadores que me elegeram. No mais a gente é chamado de dedo-duro pela oposição, de comunista pelo governo e de subversivo pelos patrões”.

Insistimos. “E a ideologia, Lula, a ideologia?” E lá veio a resposta: “Para fazer um partido dos trabalhadores é preciso reunir os trabalhadores, discutir com os trabalhadores, fazer um programa que atenda às necessidades dos trabalhadores. Aí pode nascer um partido de baixo para cima”. Estávamos diante de um líder de visões agudas. Afirmava: “Existe, na categoria dos metalúrgicos, um pessoal preparado, que lê jornal e sabe das coisas. Mas a maioria não tem tempo de dar a bênção para os filhos”. E mais: “Eu tenho muito cuidado para movimentar esta classe trabalhadora ainda inconsciente, porque o retrocesso pode ser ainda maior”.

Nem por isso, tirava o time de campo. “Não devemos abandonar a reivindicação, se não conseguirmos o que queremos, vamos voltar à carga em 1979, e não se não conseguirmos em 1979… Não estou preocupado se o ano é eleitoral, os donos do poder é que em um momento como este estão preocupados. Por isso, acho que é hora de negociar, num nível bem alto (…) Quando eu digo negociar, é porque não existe poder de barganha. (…) No entanto, vejam como são as coisas, o movimento sindical está preocupado com o AI-5. A mim, o que incomoda é um artigo da Consolidação das Leis do Trabalho que não permite a dirigentes sindicais discordarem da política econômica, quem discorda pode ser cassado”.

“Proponho-me – declarava Lula –, não incentivar aos trabalhadores a fazerem greves, mas a prepará-los a entenderem o valor da greve.” Ele já compreendia a diferença entre consumidor e cidadão, e este é aquele que tem, exatamente, a consciência dos seus direitos e dos seus deveres. Pois é, a consciência da cidadania, atributo tão raro até hoje, 35 anos depois, em todos os níveis.

Enfim, o pensamento do futuro presidente, situação inimaginável então. “Em defesa do capital nacional, eu me aliaria a eles como brasileiro (referia-se aos empresários ‘de visão menos poluída’) como se estivesse cumprindo um dever para com meu país. Claro que pretenderia levar as minhas vantagens nesta aliança, mas acima de tudo estaria o interesse nacional.”

* Mino Carta: é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Parabéns Mulher Guineense


Mulher
Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.

E riem quando estão nervosas.
Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.

Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.
Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.

Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.
Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prêmios.

Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversario ou um novo casamento.

Pablo Neruda

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Convite

Carlos Vaz

Iniciativa de criação da ONG MoviCidadão <Anós i un son>.
 Pela presente vem a ONG, MoviCidadão < Anós i un son> convidar ao (a) Exmo(a) Sr(a) a presenciar o ato da conferencia de Imprensa sobre a sua iniciativa de criação, que terá lugar na terça-feira, dia 29 de Janeiro de 2013, as 10H00, no Sala de Conferências da Casa dos Direitos, sito em Bissau Bedjo, antigo presídio.

Trata-se de uma ONG, cujo objeto será uma instituição apartidária, um projeto social, de inserção se propõe trabalhar para unir as populações do território da Guiné-Bissau, incluindo a diáspora, sem excluir ninguém, em torno da consciência de pertencermos uma nação e termos uma cidadania comum, facilitando o acesso a igualdade de direitos e de oportunidades, à participação na vida ativa social, política, económica, educacional, cultural, etc, através de um conjunto de ações e de medidas de inserção social, que favoreçam a afirmação da cidadania guineense, a união e a paz.

Sem outro assunto de momento, desde já agradecemos a sua honrosa presença e traga mais pessoas consigo.
Atentamente,
Dr. Carlos Vaz
Proponente da iniciativa

Ordidjanotanto

Faço acompanhar este post do Convite enviado pelo Carlos Vaz com este pequeno texto de Eduardo Galeano.

Ojalases, del Río de la Plata con amor y con esperanza

Ojalá seamos dignos de la desesperada esperanza. 

Ojalá podamos tener el coraje de estar solos y la valentía de arriesgarnos a estar juntos, porque de nada sirve un diente fuera de la boca, ni un dedo fuera de la mano.

Ojalá podamos ser desobedientes, cada vez que recibimos órdenes que humillan nuestra conciencia o violan nuestro sentido común. 

Ojalá podamos merecer que nos llamen locos, como han sido llamadas locas las Madres de Plaza de Mayo, por cometer la locura de negarnos a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria. 

Ojalá podamos ser tan porfiados para seguir creyendo, contra toda evidencia, que la condición humana vale la pena, porque hemos sido mal hechos, pero no estamos terminados.

Ojalá podamos ser capaces de seguir caminando los caminos del viento, a pesar de las caídas y las traiciones y las derrotas, porque la historia continúa, más allá de nosotros, y cuando ella dice adiós, está diciendo: hasta luego.

Ojalá podamos mantener viva la certeza de que es posible ser compatriota y contemporáneo de todo aquel que viva animado por la voluntad de justicia y la voluntad de belleza, nazca donde nazca y viva cuando viva, porque no tienen fronteras los mapas del alma ni del tiempo.

Eduardo Galeano

domingo, 27 de janeiro de 2013

O relato inédito do que aconteceu na madrugada de 20 para 21 de Janeiro



Fonte: EI

Um texto inédito do historiador e veterano de guerra russo Serguei Kolomnin faz um relato do que verdadeiramente aconteceu na madrugada de 20 para 21 de Janeiro de 1973. O documento, que tinha sido publicado apenas em russo, contém testemunhos dos marinheiros que estavam a bordo do navio da marinha soviética que resgatou Aristides Pereira e os restantes prisioneiros e entre as novidades avançadas, refere, pela primeira vez, que Ana Maria Cabral estava também cativa no barco guineense.

Amílcar Cabral foi morto no dia 20 de Janeiro de 1973, em Conacri. Sabe-se que regressava de uma recepção da embaixada da Polónia, cerca das 23h, acompanhado da mulher Ana Maria, quando à porta de casa foi parado por um grupo chefiado por Inocêncio Kani. A ideia original seria prender Cabral, mas na confusão que se seguiu o líder do PAIGC acabou assassinado com um tiro na cabeça.

Um outro grupo chefiado por Mamadu N’Djai invade a casa de Aristides Pereira, atam-no com um arame nas mãos e nas pernas e metem-no num carro. Seguem-se ataques às casas de Vasco Cabral, José Araújo e outros líderes do PAIGC. Todos os que foram capturados são levados para o porto e enfiados nos porões das vedetas do PAIGC. Entretanto, as autoridades de Conacri começam a agir. Na cidade é declarada a lei marcial, as patrulhas militares saem à rua e alguns dos conspiradores são presos, outros conseguem fugir e dirigem-se também para o porto.

Inocêncio Kani (que Cabral, quando esteve na União Soviética, chegou a apelidar de “futuro almirante da marinha da Guiné-Bissau”) toma a decisão de rumar para Bissau para, segundo Kolomnin, entregar os prisioneiros às autoridades portuguesas.

Entretanto, o presidente da Guiné-Conacri, Sékou Touré, ao saber da captura dos líderes do PAIGC e da sua retirada do país pede auxílio ao embaixador soviético, A. Ratanov, com o argumento que a Guiné não tinha meios para perseguir os conspiradores.

Um marinheiro do destroyer soviético, Бывалый – em grafia latina Byvalyj (O Experiente), lembra que “à meia-noite de dia 20, entrou de repente a bordo o comandante do Exército do Povo de Conacri, Sangare Toumani, acompanhado por uma equipa de especialistas militares soviéticos onde estavam o major-general Chicherin e o capitão Zhuchkova. Em nome do presidente Touré e do embaixador soviético, pediram ao comandante que se fizesse ao mar, capturasse os conspiradores e que aniquilasse qualquer bolsa de resistência”.

O comandante do destroyer soviético, o capitão Yuri Ilyin, via-se assim numa posição delicada. Era um marinheiro experiente, um dos membros da tripulação recorda que “[Ilyin] era um bom líder, exigente e justo. Os homens respeitavam-no muito”. O oficial estava bem consciente que tomar parte em operações de combate com possível uso de armas significava provocar um incidente internacional. Além disso, sem uma ordem directa de Moscovo ou do seu comando em Severomorsk [base da frota russa do norte, 25 quilómetros a norte de Murmansk], não tinha direito a largar amarras.

Mas também sentia que não tinha direito de ignorar um pedido do embaixador. Como reforça um outro marinheiro da sua tripulação, “todos nós, na época, tínhamos sido criados na tradição do internacionalismo”, e para Ilyin era a vida de amigos – dirigentes do PAIGC – que estava ameaçada.

O comandante do contratorpedeiro enviou então mensagens codificadas para Moscovo e para o seu superior da Frota do Norte, onde informava o que tinha acontecido em Conacri e transmitia a sua decisão de navegar em perseguição do grupo de conspiradores e assassinos de Cabral. Ao mesmo tempo, Ilyin sabia que não obteria uma resposta com a rapidez necessária – tanto em Moscovo como em Severomorsk era madrugada.

O capitão sabia que tinha o tempo contado para conseguir capturar os conspiradores sem arriscar entrar em águas territoriais de um país da NATO. Decidiu avançar mesmo sem respostas às suas mensagens. Faz soar o alarme de combate, reúne no convés os outros oficiais e conta-lhes o seu plano. Nenhum se opõe. Segundo Kolomnin a reacção dos marinheiros soviéticos foi unânime “é preciso salvar os companheiros de Cabral”. O único que levanta dúvidas é o representante do KGB na embaixada soviética, que praticamente diz ao capitão Ilyin que está por sua conta e risco. Apesar desta pressão, o capitão mantém a sua decisão.

Às 0h50 o destroyer faz-se ao mar, em perseguição dos conspiradores. A bordo seguia também o comandante Sangare Toumani com um pelotão de soldados guineenses. Ao fim de uma hora, chega a primeira mensagem de Moscovo – “o oficial do contratorpedeiro só poderá usar as armas com autorização do Chefe da Marinha” – mas, Ilyin já navegava preparado para o combate.

Sabia que as três lanchas rebeldes estavam armadas com metralhadoras gémeas de 25 mm, capazes de provocar sérios danos no destroyer. O navio soviético navega junto à costa, os russos conheciam as capacidades das tripulações dos conspiradores e sabiam que de noite não se atreveriam a navegar ao largo, o mais provável, pensavam, era que lançassem a âncora e esperassem pela luz do dia.

Esta hipótese é confirmada. Às 3h da madrugada, o tenente Maleshin detecta dois pontos fixos no radar, as características coincidem com os barcos dos sequestradores. Ilyin força as máquinas do destroyer, espera cair sobre o inimigo aos primeiros raios de sol. É o que acontece. Às 5h da madrugada, o contratorpedeiro russo aparece de repente, do meio da névoa da madrugada, em frente aos barcos rebeldes. Nestes, a tripulação tenta levantar âncora e ligar os motores, mas param quando vêem as torres da artilharia soviética apontadas para eles.

Os marinheiros do contratorpedeiro manobram até ficarem ao lado dos barcos dos conspiradores. Os soldados guineenses abordam-nos, desarmam e prendem os rebeldes. Toda a operação é feita sem disparar um tiro. No entanto, depois de revistados os porões, não se conseguem encontrar os líderes do PAIGC que tinham sido presos pelos conspiradores. Estes só foram descobertos mais tarde, no terceiro barco, cuja tripulação tinha perdido a orientação no escuro e encalhara nas proximidades. Segundo testemunhos de marinheiros, Aristides Pereira, Ana Maria Cabral, Vasco Cabral, José Araújo e outros membros da direcção do partido estavam com um “aspecto horrível”, com marcas visíveis de tortura e espancamento. Aristides Pereira era quem estava em pior estado e quase perdeu as duas mãos por falta de fluxo sanguíneo.

No caminho de regresso, o capitão Ilyin envia novos telegramas codificados para Moscovo com o relatório completo da missão. Quando o destroyer chega a Conacri tem à espera um grupo de especialistas soviéticos. Depois da entrega “oficial” dos barcos capturados e dos rebeldes às autoridades guineenses o oficial russo é literalmente atacado por todos os representantes da embaixada da URSS.

Todos querem saber detalhes, principalmente se foram usadas armas. De acordo com as memórias de um marinheiro do destroyer, um dos diplomatas estava tão nervoso que não se coibiu de fazer o sinal da cruz enquanto murmurava “graças a Deus, não aconteceu nada”.
Mas a história não acaba aqui. Apesar da atmosfera de euforia vivida, das congratulações por parte da tripulação, havia um homem, um único homem, o capitão Yuri Ilyin, que teria de ser responsabilizado pelas suas acções.


Em Moscovo, a sentença já tinha sido dada: “ele [Ilyin] não pode ser perdoado”. Por ordem do Comandante da Marinha soviética, Ilyin foi removido do seu posto por “arbitrariedade e violação das instruções oficiais”.

Valeu-lhe então a posição do major-general Chicherin, que enviou um novo telegrama ao Estado Maior onde dizia que a acção do capitão Ilyin “merecia a mais viva estima do presidente Sékou Touré e foi uma grande vitória sobre os mercenários do imperialismo. Sékou Touré solicita a promoção do camarada Ilyin”.

No dia 22 de Janeiro de 1973, as acusações contra Ilyin foram retiradas. Algumas horas depois, chega um telegrama assinado pelo almirante Yegorov, comandante da frota do norte, onde declara a sua gratidão ao capitão Ilyin pela “acção audaciosa e decisiva num serviço de combate no Atlântico”. O telegrama terminava com um “regressa. Seremos piedosos”.

Depois de concluir o serviço, o destroyer regressou à pátria. Kolomnin não sabe se algum dos tripulantes foi condecorado, mas diz acreditar que não. O navio de guerra continuou a navegar até ao final dos anos 80 do século XX. De seguida, o Byvalyj foi desactivado e vendido como sucata para a China.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

40º Aniversário da morte de Amilcar Cabral



Intervenção de Pedro Pires

Exmos. Senhores Conferencistas e Moderadores, Senhoras e Senhores Participantes, Amigas e Amigos,
Agradeço-vos pela vossa prestimosa colaboração e pela vossa presença amiga.

Entendo, estimadas Amigas e caros Amigos, que este é o tempo e a melhor ocasião para falar no discurso direto sobre o 20 de Janeiro de 1973, mesmo correndo riscos de incompreensão. Confesso-vos que tenho um gozo muito especial em estar, aqui e agora. Sinto-me um afortunado e um privilegiado! Na verdade, decorridos quarenta anos sobre a tragédia que foi o assassinato de Amílcar Cabral e estar presente com saúde e ainda com lucidez e vigor intelectual, numa grande Assembleia, como esta, em que nos reunimos para evocar a memória daquela figura histórica, que era o nosso Líder e nos inspira, ainda hoje, não deixa de ser um grande privilégio.

E os meus velhos camaradas, aqui presentes? Como se sentem e o que estarão a pensar? Certamente, partilhamos os mesmos sentimentos de orgulho e de dever cumprido e rememoramos a longa caminhada feita. Afinal, pertencemos a uma geração afortunada que o escritor angolano, Pepetela, nosso contemporâneo, celebrou na sua obra “A Geração da Utopia”.

Nós que lá nos encontrávamos, naquele momento, estamos certamente a remorar os factos e a remoer as inquietações, os medos, as angústias, as dúvidas e os sofrimentos que nos afligiam. Mas, a maior das inquietações seria seguramente: como preservar os ganhos, então conseguidos, da luta de libertação? Ou, o que fazer para não perder, sem a liderança de Cabral, a batalha na sua reta final, quando estávamos convencidos de que com ele e sob a sua liderança podíamos ganhar e que a vitória não estaria muito distante?

O caminho escolhido e percorrido foi o caminho da superação das nossas capacidades pessoais e das fraquezas íntimas; da união e da comunhão de esforços; da repartição de responsabilidades e da assunção plena dos compromissos morais que nos ligavam ao combate pela libertação nacional.

No meu caso, quando a representação da Frente Sul chegou a Conakri, coube-me ficar numa casa de acolhimento, algures em Conakri-II, durante mais de um dia. Fiquei a aguardar a decisão superior, que jamais chegava, que me permitisse juntar aos outros dirigentes que se encontravam hospedados num hotel no centro da cidade. A minha chegada ao hotel e o meu encontro com os outros camaradas e os membros das delegações estrangeiras foram extremamente emotivos. Porém, aquele tratamento desigual não me permitiu ver, na véspera, o corpo de Cabral. Toda a Direção do Partido presente na capital guineense participou nas cerimónias de homenagem que decorreram no Palácio do Povo e no Estádio nacional. Tiveram grandeza comparável às honras oficiais prestadas a um Chefe de Estado ou a um herói nacional desaparecido.

O enterro foi uma despedida dilacerante. Desaparecera a figura tutelar insubstituível, na qual nos amparávamos. Pessoalmente, envolveu-me a sensação de um enorme vazio. Revivi, então, um outro momento aflitivo e desafiante, parecido com o que estávamos a presenciar e que ocorrera, cerca de três anos antes: a operação militar portuguesa (Mar Verde) de assalto à capital guineense, acompanhada da tentativa falhada de golpe de Estado e de mudança do regime do Presidente Seco Turé, aliado do PAIGC, cujos objetivos finais incluíam a neutralização da retaguarda de apoio logístico, a destruição das estruturas do PAIGC e o assassinato de seus dirigentes.

Apoderou-se do meu espírito, naquele momento, as mesmas interrogações, as mesmas angústias e as mesmas inquietações que antes me tinham atormentado. Como vencer esses contratempos, todos? Seríamos capazes?

Aquela cerimónia remeteu-me, ainda, a um outro momento penoso, quando das honras idênticas prestadas ao Kwame N’krumah. E, foi de uma forma digna que Conacri se despedira, com orgulho, dignidade e mágoa, de dois dos maiores combatentes pela causa africana. Ambas as mortes tinham o seu lado trágico e imerecido.

As instalações do nosso quartel-general tinham sido colocadas sob o controlo das autoridades guineenses durante algum tempo. Passaram para o controlo da Direção do PAIGC, dias depois, após as exéquias oficiais do nosso Líder. Voltamos à nossa “casa” e assumimos por fim o controlo e a direção do nosso quartel-general.

Foi a partir daquela altura que pudemos encarar uns aos outros, olhos nos olhos, e tentar perceber o que cada um pensava e o que cada um sentia. Pessoalmente, interroguei-me sobre o comportamento de um ou de outro, pelo seu desalento, pelo seu ar absorto e esquivo, longe dos acontecimentos, ou pela sua emoção excessiva. Isso chamou a minha atenção.

A pergunta que me interpelava insistentemente era: o que aconteceu? Mas, como foi possível? Que tamanha traição! Até hoje sinto-me perante um comportamento estúpido e um ato abominável e criminoso, sobretudo, destituído de sentido e de qualquer perspectiva política.

Depois de uma observação atenta daquela situação e de alguma reflexão, ficou-me a perceção de que reinava uma excessiva emoção e desorientação no seio dos dirigentes do Partido presentes e de que era urgente mudar aquele estado das coisas, pois, era preciso recuperar os ânimos e a estabilidade emocional, repor a Secretariado-Geral a funcionar e programar e impulsionar a retomada das atividades políticas e militares nas Frentes.

Pressenti riscos de inércia e de bloqueio. Era necessário dar sinal de que estávamos vivos e decididos a prosseguir a luta. Dirigi-me ao Luís Cabral, ao Chico Mendes e ao Nino Vieira, principais dirigentes presentes, e propus-lhes a realização de uma reunião dos membros de CEL para a análise e avaliação da situação e a preparação do prosseguimento das ações políticas e militares, enfim, repor em marcha as estruturas políticas e militares do PAIGC.

Fez-se a reunião da CEL proposta e decorreu num clima de muita sinceridade e responsabilidade. Foi gravada para que pudesse ser apresentada, posteriormente, a Aristides Pereira, que se encontrava em tratamento. Durante os debates foi notório o incómodo do Osvaldo Vieira. Conclui a minha intervenção mais ou menos da forma seguinte: “Nenhum de nós está em condições de substituir individualmente o Amílcar e a única forma de o conseguir é cada um de nós assumir uma quota-parte daquilo que lhe competia fazer. Assim, todos juntos, vamos poder superar a sua ausência”. Dessa reunião do CEL saíram orientações para as estruturas do Partido e o apelo ao reforço e intensificação da ação militar e política contra o inimigo. E, por esta via, ficaram relançadas as condições psicológicas para se romper com os riscos de inércia, com a indecisão e com a lamentação, enfim, para se repor em marcha a máquina do PAIGC.

Ainda em Conacri, aconteceram dois episódios casuais que me preveniram das minhas novas responsabilidades. O primeiro foi um encontro com a Ana Maria Cabral, em companhia do Vasco Cabral. A Ana Maria convidou-nos para esse encontro na sua residência. Estou em crer que o objetivo era alertar-nos para os riscos existentes e para as responsabilidades pessoais dos dois. Falou connosco, aproximadamente, nos seguintes termos: “vocês os dois têm uma responsabilidade grande nisso; espero que vão fazer tudo para que a nossa luta prossiga e com sucesso”. Foi uma manifestação de confiança e, ao mesmo tempo, de preocupação quanto ao futuro. A nossa resposta foi mais ou menos esta:“Vamos, sim!” Hoje, estamos aqui e eu a Ana Maria. O Vasco já não está entre nós. Note-se que, posteriormente, recebi apelos e manifestações semelhantes de vários outros camaradas guineenses.

O segundo encontro foi com o Afonso Gomes, que estava destacado na Marinha do PAIGC, no porto de Conakri, onde os cabo-verdianos passaram por uma situação de alto risco. Esse foi mais dramático e mais interpelante. O Afonso disse-me, mais ou menos, o seguinte: “Vim dizer-te que estamos contigo. Vamos fazer o que decidires: se decidires que a gente abandone o Partido, vamos abandonar; se decidires para ficarmos, também vamos ficar”. Fiquei com a impressão de que estava a transmitir-me uma mensagem coletiva dos cabo-verdianos que estavam na Marinha. Respondi-lhe, da seguinte forma: “Afonso, vamos ficar. Não vamos oferecer esse presente ao nosso inimigo. É isso mesmo que eles gostariam que acontecesse!” O Afonso respondeu-me: “Entendido, vai ser assim!” E, separamo-nos. A nossa amizade e confiança recíprocas ficaram consolidadas para sempre.

Apercebi-me na altura de que recaiam sobre mim mais responsabilidades e que havia confiança e esperança na minha pessoa, que tinha que honrar. E, sobrecarregados por maiores responsabilidades, eu e os meus camaradas, regressamos às Frentes de Luta. Acredito que mais motivados a levar avante a luta, a cumprir o compromisso com o nosso Líder então desaparecido tragicamente e, sobretudo, determinados a não falhar. No meu caso, regressei à Frente Sul, em companhia do Comandante Nino Vieira, com a missão do prosseguimento da preparação do cerco de Guiledje. Os resultados finais da operação são conhecidos. Seria fastidioso enumerá-los, aqui e neste momento.

Cabral costumava alertar os seus camaradas, e não raras vezes, para os riscos e as consequências nocivas que podiam resultar de erros e de comportamentos inadequados. Dizia então: “A nossa luta no ponto em que se encontra só pode destruída por nós próprios ou com a nossa colaboração, pois, o nosso inimigo já não pode fazê-lo, mesmo que o queira.” Foi o que se verificou com o seu assassinato, em que estivemos mesmo à beira do precipício. Por isso, sinto-me na obrigação de enaltecer, para sempre, o contributo de todos aqueles e aquelas que não permitiram que essa desgraça histórica se concretizasse. Porém, mesmo hoje, não nos libertamos de riscos de regressão nos mais diversos domínios, pois, existem e andam à espreita por todo lado. E é preciso que estejamos atentos aos sinais destes riscos.

Retomando o método de análise de Cabral, quando da homenagem a Kwame N’krumah, tentarei apreender as lições negativas e positivas que se pode tirar da tragédia. Mesmo assim, é difícil entender um ato tão vil quanto covarde e ignóbil, despido de qualquer sentido de futuro e utilidade política para a Guiné. Deste ato não é possível deduzir qualquer intenção de servir a luta e o país. Está-se perante uma atitude de pura traição e de venda de consciência!

Num rápido olhar sobre a pedagogia e a liderança posta em prática por Amílcar Cabral, apercebe-se de que foi, no decurso do exercício da sua liderança da luta que conduzia, que apreendeu melhor a grande complexidade da realidade societária em que intervinha. Procurou agir no sentido da transformação dessa realidade humana, o que conseguiu em grande medida. Porém, o processo de transformação e de recriação revelou ser longo e bastante complicado. Enquanto líder, foi um verdadeiro pedagogo e procedeu sempre no sentido de fazer crescer com ele os seus colaboradores e companheiros, seja pelo exemplo, seja pela formação, direta e indiretamente. Apelava os seus correligionários ao estudo, à aprendizagem, à apropriação do pensamento crítico e de uma visão estratégica quanto ao futuro da luta. Amílcar Cabral agia, enquanto líder, numa tripla condição: de ator e dirigente político, de investigador e de interventor social.

Todavia, verificava-se, na prática, discrepâncias visíveis entre a ética postulada por Cabral e o comportamento quotidiano de vários quadros dirigentes do PAIGC. Outrossim, verificava-se um desnível acentuado de conhecimento, de consciência política e de visão e, ainda, entre as capacidades e qualidades do líder máximo e as capacidades e posturas de uma parte expressiva da Direção, salvo algumas exceções. Faltava-lhes estatura e consciência política que correspondessem às responsabilidades e às exigências decorrentes do estádio avançado de desenvolvimento e dos sucessos da luta de libertação nacional.

Colocava-se, então, a questão crucial da qualidade dos homens (da sua consciência política e capacidade de liderança) e das capacidades de estes em entender as características do momento histórico, com suas exigências e necessidades, que não podiam resumir-se meramente às atividades militares. Esta ilação está evidente nas críticas de Cabral dirigidas a comportamentos impróprios de muitos dos seus companheiros. Ora, a situação impunha que estes compreendessem os riscos, os medos, as canseiras e os efeitos perversos das pressões políticas e das intensas campanhas propagandísticas do inimigo, enfim, dos possíveis efeitos da guerra psicológica do inimigo sobre os comportamentos dos combatentes e das populações das regiões libertadas.

Fraquezas e falhas graves verificavam-se ao nível dos quadros intermédios , por insuficiente consciência política e por falhas de rigor e omissões na vigilância, no âmbito do exercício das suas respetivas funções.
Numa luta política armada daquela natureza, de longa duração e portadora de muitos sacrifícios e de renúncias pessoais, a consciência política é determinante. Pois, intervêm vários fatores adversos, tais como, a saturação e o cansaço físico e moral e podem surgir os riscos de perda de fé e de degenerescência ideológica. Naquelas condições, impunha-se, reforçar a ação política e adotar como forma de estar viver simultaneamente o presente e o futuro. Pois, são precisamente as esperanças do futuro que permitem superar mais facilmente as dificuldades do presente e sobrepor-se àqueles riscos de desencaminho. Em resumo, isso exigia uma forte consciência política. Teria sido um dos dilemas de difícil solução de muitos combatentes no seio do PAIGC. No campo político-militar, após um longo e desgastante período de equilíbrio de forças, com riscos evidentes de deterioração das situações internas, para ambos os lados, tornava-se imperioso o rompimento daquela situação. Do lado do PAIGC, estava em curso as diligências para a obtenção e o emprego dos foguetes antiaéreos SAM, que vieram a ser determinantes no desfecho da guerra.

Do lado das autoridades coloniais, estava em curso uma campanha militar desesperada, lançada pelo seu Comando político-militar, na tentativa de reverter a seu favor o estado de equilíbrio militar, portador de muitos riscos, que vinha prevalecendo, apostando na recuperação das regiões libertadas, o que estava a ser muito difícil, conjugada com uma intensa e diversificada campanha sociopolítica demagógica, em torno da chamada Guiné Melhor. O recurso ao assassinato do Líder do PAIGC insere-se na busca de saída para o grave dilema em que vivia o poder colonial, precisamente, quando sentia que estava em vias de perder a guerra, com consequências desastrosas para o futuro do império colonial. Nada melhor do que decapitar o PAIGC, solução experimentada em outras guerras coloniais. Reside aí a razão principal da decisão última de avançar com a operação do assassinato de Amílcar Cabral pelos serviços secretos portugueses e por seus homens-de-mão.

Em Novembro de 1970, o Comando político-militar colonial tinha fracassado vergonhosamente na sua tentativa desesperada e vã de provocar a mudança do regime guineense, aliado do PAIGC, e de destruição das instalações de retaguarda do Partido e de simultaneamente perpetrar o assassinato de seus dirigentes. Tinha, igualmente, fracassado numa outra operação secreta, mais perversa, de desmembramento da organização militar do PAIGC, a partir do seu interior, através da infiltração e da corrupção de dirigentes das FARP na Frente Norte. Os três majores dos serviços de informação militar colonial, que conduziam a operação malograda de infiltração e de corrupção de responsáveis militares daquela Frente, caíram numa cilada e foram abatidos. Esses desaires conjugados com os riscos eminentes de um colapso militar e do afundamento do império colonial, obrigaram o poder colonial a ir mais longe na sua miopia política e na sua ação criminosa e recorreu decididamente ao assassinato do Líder do PAIGC.

Vale a pena lançar um rápido olhar sobre o lugar do crime. As estruturas em Conacri revelavam ser o elo mais fraco do sistema do PAIGC. Encontravam-se aí concentrados os serviços do Secretariado-Geral, a Escola Piloto, os Armazéns e as Oficinas, bem como, a Prisão. No porto de Conacri, estavam ancoradas as unidades da marinha de guerra e os barcos de transporte de mercadorias. Aquelas instalações eram o ponto de passagem, para entrada e saída, de combatentes e integravam as residências dos responsáveis e dos trabalhadores. O pessoal de serviço não dispunha de rendimento certo, embora, tivesse garantido residência, alimentação e vestuário (os seus elementos faziam requisições no SG e andavam sempre à procura de como conseguir mais dinheiro). Também, encontrava-se presente um certo número de feridos de guerra, entre os quais, muitos inventavam subterfúgios para não voltarem às Frentes de luta. E, ainda, alguns elementos afastados de funções por corrupção e por indícios colaboração com os serviços secretos do inimigo. Foi essa amálgama humana, onde havia de tudo e prevalecia gente de fraca cultura e de baixa preparação política, de que se serviram os serviços secretos coloniais para a preparação e a execução do crime.

Tem ainda pertinência caracterizar os principais agentes do crime. Ora, tem sido corrente, nas lutas contra o colonialismo, o recrutamento de ex-presos políticos para traírem a causa libertadora e para realizarem trabalhos sujos contra a sua própria organização e os objetivos políticos de libertação, ao serviço do poder colonial (uma autêntica mentalidade de servidão e de dependência). Neste aspeto, nada houve que já não já fizesse parte do arsenal de métodos conspirativos colonialistas. 

No caso, os ex-presos políticos e agentes dos serviços secretos portugueses e utilizaram como argumento de convencimento a cobertura falaciosa de heróis que muito teriam sofrido nas masmorras coloniais. Foram seus coautores alguns responsáveis corruptos, castigados por conivência com o inimigo, um ou outro dirigente militar, ferido de guerra, que perdera confiança e fugia ao regresso às frentes e um ou outro dirigente politicamente degenerado e ultrapassado pelo crescimento e pela dinâmica da luta. 

Outrossim, é preciso ter em mente que as guerras coloniais versus guerras de libertação nacional apresentam várias facetas: a vertente militar, a vertente política, ideológica e psicológica e a vertente subterrânea, de conspiração, de subversão, de desinformação, de intoxicação ideológica, de espionagem, de assassinatos e golpes sujos. Em princípio, todas as guerras são igualmente violentas e cruéis, onde o humanismo é uma raridade, e cujo objetivo fundamental é a busca da vitória, por todos os meios. É neste quadro de guerra, da conspiração e dos métodos criminosos e repressivos coloniais que se deve entender o recurso ao assassinato de Amílcar Cabral. Além disso, não há inimigo altruísta e bondoso. Tentar apresentar isso como argumento de defesa ou de justificação de qualquer atitude de boa-fé é uma desonestidade intelectual e pura falácia. Um dos argumentos de intriga política dos conspiradores e assassinos era que os cabo-verdianos teriam um tratamento privilegiado no seio do PAIGC. 

Este expediente foi ainda recentemente utilizado por certos homens da pena ao serviço dos restos ideológicos do poder imperial, no intuito de desresponsabilizar e branquear os crimes dos seus Chefes coloniais, convertidos em heróis serôdios. Mas, as nossas referências são antitéticas. E nesta matéria, não há lugar para confusão. Com efeito, no quadro da guerra psicológica, de intoxicação, de diversão e de desinformação, o Comando político-militar colonial montou uma insidiosa campanha contra os funcionários e os cabo-verdianos residentes na Guiné, no intuito cínico e perverso de confundir a opinião guineense, alijar responsabilidades, aliás, históricas, e de tentar transferir para esses cabo-verdianos, logo, para Cabo Verde, as responsabilidades, crimes e desmandos que foram e são da responsabilidade do colonizador e do colonialismo português. Na mesma altura e no âmbito da repressão colonial, muitos agricultores e pequenos empresários de origem cabo-verdiana eram assassinados e vários funcionários eram presos e deportados, por envolvimento com o PAIGC. Naquela fúria repressiva, várias personalidades locais de origem cabo-verdiana foram presas, torturadas e deportadas para as masmorras da PIDE em Portugal.

Ainda, em relação aos combatentes cabo-verdianos, presentes no terreno da luta, o comportamento da maioria foi sério e engajado. Sou um deles. E, para a nossa afirmação social ou intelectual não precisávamos de quaisquer benefícios materiais ou preferenciais. A nossa afirmação, prestígio e autoridade derivaram tão-somente da nossa atitude, empenho e lealdade. Até, poderia ter-se verificado uma maior afinidade ideológica e comportamental entre os cabo-verdianos e Amílcar Cabral, o que não deixaria de ser um fator para uma maior aproximação. Ressalto aqui um entendimento muito pessoal: os combatentes cabo-verdianos portaram-se, nas Frentes da Guiné, como autênticos patriotas internacionalistas.

No que se refere à temática cultural, a pergunta é: porquê Amílcar Cabral deu tanta atenção à cultura? Estou em crer que a razão reside no facto de ter verificado, no decurso da sua ação de condução da luta, e a nível cultural, manifestações de fatores que relevavam fraquezas e podiam constituir riscos e bloqueios prejudiciais ao desenvolvimento do processo de libertação. Era necessário compreender e interpretá-los.

Daí, que se tenha referido a valores negativos e positivos da cultura. Entendo que foi obrigado a fazer a reciclagem do seu pensamento materialista, perante a força de certos fatores culturais, em choque com as suas próprias convicções. De todo modo, era imprescindível estar-se atento às perversões e desvios que pudessem ser provocados por entendimentos insuficientes de ordem cultural. Até teria interesse confrontar essas manifestações de fraqueza com as resistências à mudança e comportamentos que frequentemente criticava. Entendia ainda que a luta de libertação era, ela mesma, portadora de violência cultural. Chamo ainda atenção para a problemática da definição, nas teses de Cabral, de“o que é ou quem é povo”. A necessidade de adequação ou de esclarecimento da abrangência deste conceito teria surgido do facto de ter pensado que na confrontação com o colonialismo se manifestariam dois blocos: o colonialismo, de um lado, e o povo colonizado em peso, do outro lado. 

Porém, verificou-se que uma parte do povo colonizado estava conivente com o poder colonial. Donde, a necessidade de circunscrever o conceito povo ao “povo em luta” e o conceito unidade, diferente da unanimidade, à “unidade necessária”.

Cabral propugnava e observava, enquanto princípios políticos e morais fundamentais, a responsabilização individual e coletiva e a apropriação do pensamento crítico próprio e autónomo (em relação ao pensamento dominante), ao serviço da elaboração e do aperfeiçoamento de uma via libertadora específica.
As escolhas políticas e posturas éticas de Amílcar Cabral simbolizam a coerência, a abnegação, o empenho, a lealdade e o sacrifício. Significam o patriotismo e o comprometimento, quer com as opções pessoais, quer com os interesses e aspirações do seu povo. Na sua personalidade juntavam-se o otimismo histórico e uma fé enorme na capacidade reabilitadora das pessoas. A sua ética é a do compromisso voluntário e do dever indefetível para com a libertação, a dignidade e o progresso nacional e africano. Não se satisfazia com o simples discurso anunciador. Comprometia-se agindo em busca de resultados e de soluções. Não se deixava cativar pelas aparências, antes, buscava chegar à essência dos factos. Cultivava o realismo na elaboração e execução dos projetos políticos e das estratégias militares. Outrossim, era dotado de uma enorme intuição política e capacidade de antecipação dos acontecimentos. É esta personalidade ímpar que hoje evocamos. E que nos interpela, igualmente.

Este ato evocativo transporta, consigo, uma enorme carga interpelativa. Evocamos uma figura histórica que respondeu ao chamamento do seu tempo e nos deixou um precioso legado político e moral. É precisamente isto que nos vem questionar. Hoje, somos interpelados e convocados a responder aos chamamentos dos tempos presentes, porém, diferentes dos anteriores!

Presentemente, a responsabilidade individual de cada um de nós aumenta, cada dia. Ora, não basta alertar e criticar! Torna-se imperioso participar e co-responsabilizar-se, na perspetiva da edificação de uma democracia participativa de diálogo, alargada e cooperativa, e precisamente, quando está evidente que as formas atuais de fazer política e de liderança mundial não satisfazem as exigências nem respondem às necessidades e responsabilidades contemporâneas.

É ainda certo que, no continente africano, verificaram-se grandes progressos nos últimos cinquenta anos, embora não tenha sido um processo linear. Este é um momento que se pode considerar de viragem. Com efeito, abriram-se novas oportunidades, que requerem um aproveitamento criterioso, em prol do aprofundamento e do alargamento do processo de libertação e da autonomização política do continente, nos diversos domínios de atividades e de intervenção. Porém, manifestam-se igualmente fenómenos preocupantes, portadores de riscos regressivos, bastante sérios, que reclamam que sejam enfrentados com determinação, lucidez e coerência.

Neste momento, as lideranças políticas da África Ocidental e do Norte, em particular, são chamadas a encontrar caminhos e soluções duradouros para os complexos desafios ideológicos e civilizacionais com que os respetivos países estão confrontados. Do meu lado, não antevejo uma coabitação pacífica possível com as práticas retrógradas e um desencontro tão grande de valores e de interpretação dos direitos das pessoas. Antes, vislumbro um conflito grave que opõe a modernidade (não confundir com a modernidade ocidental) ao passadismo religioso, agressivo e refreador do progresso material, social, cultural e científico, a que todos os africanos têm direito.

Para o nosso bem comum, somos chamados a empenhar-nos para que vençam os valores universais fundamentais e se afastem de vez o espectro de um eventual triunfo da intolerância cultural, do fanatismo religioso e espírito de cruzada, de sinal contrário, e do retrocesso político.

Não é sensato nem judicioso que se esteja a contribuir para o bloqueio do avanço do contente africano e, ainda, para cavar e aprofundar as nossas dependências atuais. Esses desesperados de causa são chamados a mudar de rumo e a adotar uma atitude realista e lúcida de compreensão do mundo contemporâneo. Para além dos demais desafios, que são muitos, este me parece o mais complexo e portador de enormes riscos em relação ao porvir africano de progresso a que aspiramos construir.

Vivemos uma conjuntura mundial marcada por enormes incertezas, o que nos convida à reflexão e à análise retrospetiva da caminhada feita, dos nossos erros e défices e dos nossos sucessos e ganhos; e projetar, sobre e a partir deles, um renovado e esperançoso desígnio continental.

Outrossim, entendo que, por exemplo, Cabo Verde tem sido e continuará sendo um desafio para o seu povo e para as suas lideranças. Neste sentido, impõe-se às lideranças cabo-verdianas evitar que haja uma avaliação enganadora dos avanços conseguidos e trabalhar sempre com base numa visão prospetiva do futuro mais provável, que espera o país, com as suas enormes oportunidades, bloqueios e desafios. E, como propunha Cabral, a atitude apropriada é: “esperar o melhor e preparar-se para o pior.”

Com efeito, precisamos de uma visão partilhada do futuro em que, todos, nos reconheçamos. Desta forma, estaríamos melhor apetrechados e mais disponíveis a fecundar consensos e, logo, melhor apoiados a ser bem-sucedidos. Pois, o desenvolvimento sustentável do país, sem riscos de regressão, que proclamamos, constitui um longo e esforçado processo de crescimento económico e de geração e acumulação de recursos. Só pode ser uma obra de várias gerações, que necessita da garantia de continuidade. Assim, impõe-se às próximas gerações de liderança ter a lucidez e a humildade de buscar, descobrir e realizar esta missão histórica.

Aliás, temos por onde nos inspirar: os nossos ganhos sucessivos, desde 1975; e, ultimamente, os feitos inexcedíveis dos nossos basquetebolistas e futebolistas (a quem desejo uma boa campanha na África do Sul), que representam a vitória da nossa Nação, pequena, unida e solidária.
Finalmente, felicito e incentivo a Comissão Organizadora do Fórum, encabeçada pela Dra. Crispina Gomes, e todos aquelas e aqueles que se juntaram a ela para a construção do sucesso deste evento. A todas e todos, o nosso muito obrigado!

Declaro aberto o Fórum Amílcar Cabral 2013.
Praia, 18 de Janeiro de 2013

Ordidjanotando

Agradeço ao irmão, amigo e camarada Miguel de Barros, pelo envio desta belíssima intervenção do Comandante Pedro Pires, no Fórum Amílcar Cabral 2013.